Me diziam ainda em Foz do Iguaçú: cuidado com a comida e a água no Paraguai, eles são sujos, não tem cuidado com a comida, cagam na rua; também cuidado com a polícia paraguaia, são extremamente corruptos, só há diálogo na base da propina; é território de ladrões e larápios, os carros não tem placa, as estradas não tem lei; há guardas armados nas portas de comércios, restaurantes, edifícios residenciais, um climão de bang-bang ; os paraguaios tem a boca cheia de dentes de ouro pra substituir dentes podres, o sistema de saúde do país é muito precário, se eu me acidentasse na estrada não haveria hospital por perto. E como muitos dos brasileiros com quem eu convivia, eu nutria a imagem de um país pobre ou paupérrimo, quase uma nação-mendiga, sem estrutura nem qualquer atrativo maior do que fazer compras em Ciudad del Leste (o que nos faz associar, quase que automaticamente, paraguaios com muambeiros, comerciantes de produtos falsos). Eu carregava também a imagem vaga de um país que ainda sofria as consequências da Guerra do Paraguai, ocorrida há quase 150 anos atrás.
A favor do Paraguai eu cultivava o interesse em ouvir de perto a música paraguaia, em particular os violeiros, que conheci um pouco através das composições do Agustín Barrios Mangoré, da influência dos violeiros paraguaios no estilo da Helena Meirelles (uma puta violeira mato-grossense*), e em um ou outro grupo instrumental ou de cantores paraguaios, de nome genérico, que tocavam músicas rancheiras, valsas ou polkas (apesar de saber que tanto no Paraguai como em quase todo país da América Latina de hoje só ouvirei variações de cúmbia). Também a favor, minha enorme ignorância acerca de um país aparentemente sem grandes atrativos naturais, turísticos, culturais, o que me atiçava a curiosidade para ver o que havia por lá. Muitos dos alertas infelizmente se confirmaram, mas com ressalvas; hoje, após duas semanas percorrendo o Paraguai e já quase chegando ao Uruguai, vemos como muitos dos preconceitos que tínhamos caíram por terra, e que muito além da pobreza, da precariedade e das muambas, o Paraguai foi mais um dos lugares onde a renovação dos “valores” que a viagem de bicicleta nos suscita fizeram-nos ver muitas riquezas, algumas inclusive ameaçadas.
Mapa do Paraguai
Explicaram-me que, em geral, um turista que queira visitar o Paraguai percorre um triângulo, que são as rotas entre Ciudad del Leste, Assunción e Encarnación (as 3 maiores cidades paraguaias). Olhando o mapa paraguaio, esse roteiro concentra-se na região sul do país, onde também está concentrada a maior parte de sua população e atividade econômica: toda a região norte, muito maior em extensão territorial, é ao Nordeste ocupada principalmente por fazendas de criação de gado (em grande parte nas mãos de estrangeiros que ali foram morar e trabalhar, como os brasiguaios, americanos, canadenses e outros); e ao Noroeste está o grande Chaco paraguaio, muito árido, quase improdutivo e pouco habitado. Nosso percurso não seria muito diferente ao do turista padrão (com o diferencial de não estarmos motorizados): entraríamos por Ciudad del Leste percorrendo a perigosa Ruta 2 até Assunción, e de lá desceríamos pela Ruta 1 até Encarnación, já na fronteira com a Argentina.
Saímos cedo de Foz do Iguaçú num domingo (sempre um dia propício para sair ou chegar em cidades grandes, há menos movimento nas estradas). A Ruta 2 tem aproximadamente 330 km de extensão num caminho praticamente plano, e pensando em manter nossa média de 100 km de deslocamento por dia, pararíamos duas noite até chegarmos no terceira dia na capital Assunción.
Logo que atravessamos a fronteira paraguaia ouvi meu nome na rua. Da janela de um carro apresentou-se a Sheung, amiga ceramista da minha mãe que mora em Foz e foi nossa primeira opção de hospedagem por lá antes de entrarmos em contato com a Cida Muriana. Não nos conhecíamos, mas minha mãe a tinha informado de que estávamos pela cidade, viajando de bicicleta, a Sheung mesma já tinha visitado o blog e visto fotos nossas; não tinha muito como errar, eu era o Affonso-filho-da-Fátima. A Sheung desceu do carro, em seguida seu filho com a namorada, o marido foi estacionar o carro e veio na sequência. Conversar com eles aliviou um pouco minha tensão de estar entrando em um país novo, numa região perigosa e precária. Perguntei sobre o interior do Paraguai, as condições das estradas, a qualidade da água e da comida, e as informações não fugiram muito ao que o Xande Muriana e outros haviam nos alertado: nas estradas não havia muita lei, vinham motos pela contra-mão no acostamento, o caminho era quase todo de mão-dupla com uma pista só em cada lado, não haviam indicações de velocidade pros carros. Apesar de todo esse cenário, esse encontro com a Sheung me passou muita positividade.
Mesmo sendo domingo, em Ciudad del Leste haviam lojas abertas, telões eletrônicos ligados, motoqueiros circulando e crianças oferecendo-nos para estacionarmos as bicicletas e irmos às compras. Passamos reto todo o miolo comercial da cidade em direção à estrada, e bastaram poucos quilômetros adentro para que se definissem algumas constantes da Ruta 2: ficou intuitivamente claro (pois não havia sinalização que atestasse isso) que a pista era exclusiva para carros, ônibus e caminhões, e que o acostamento dividiríamos com as motos, muitas, vindas das duas direções e constantemente carregando mais de 2 pessoas, inclusive guiadas por jovens de não mais que 14 anos (o que vai contra o ineficiente código de trânsito local); nunca vi tantos animais não só mortos, mas recém-mortos numa só estrada (e aqui volto atrás no que escrevi antes sobre cheiros de animais mortos me devolverem sensações de frescor, era uma nhaca pestilenta); nas laterais da estrada muitas casas com um jardim de uns 20 metros as separando do asfalto, e em muitas delas um comerciozinho que variava entre borracharias pra motos (“gomerias”), sorveterias (“helados”), barraquinhas de empanadas ou chipas (uma espécie de pão de queijo paraguaio), tábuas de madeira sobre as quais ficavam à venda chumaços de erva pra tererê (a mesma erva utilizada no chimarrão gaúcho ou no mate argentino, mas aqui bebem gelado), e em todo canto plaquinhas pintadas à mão anunciando “hay hielo” (há gelo); na frente de praticamente todas as casas, famílias ou vizinhos em roda ou semi-círculos voltados pra estrada, sentados numa cadeira que parece padrão em todo o território paraguaio (e que a Cida Muriana também tinha), conversando e tomando tererê o dia todo, e quase sempre parando a conversa pra nos seguir com o olhar (eu acenava com a mão sempre que podia, e quase sempre respondiam com tchauzinhos, gritos coletivos de “Suerte!”, uma ola de torcida de estádio, sempre muito calorosos); nos gramados entre o asfalto e as casas, uma quadrinha com rede pra jogar vôlei ou fut-vôlei, frequentemente com pessoas jogando (lembrando que era domingo); por todo o Paraguai cartazes, pinturas ou lembretes dos festejos do bicentenário de sua independência, ocorrida em 181o e comemorada em 2010; e, finalmente, muitos bois e vacas, e em menor número bodes e cabras, amarrados ao pescoço por cordas de uns 5 metros presas em estacas na terra ou amarradas em árvores, pastando nas laterais do aslfalto.
Mais um detalhe do tipo técnico, notado pelo Fabrício, é que por todas as estradas que percorremos no Paraguai só utilizamos duas coroas, isto é, o grupo de marchas mais pesadas e eventualmente as médias, nunca as leves, o que atesta que as estradas eram mesmo planas.
Kombi paraguaia (roubei essa imagem do google)
Cadeiras coloridas com encostos feitos de plástico emborrachado, muito comuns nos quintais de todas as casas do Paraguai
Três meninos que trabalham numa barraquinha de beira de estrada que vendia de tudo um pouco: azeite, arroz, sabonete, gelo...
Na primeira parada pro almoço já tivemos algumas dificuldades com a língua e com a nova moeda que estávamos usando (o guarani), quase devolvemos o prato já montado por não nos entendermos com o garçom quanto ao preço combinado. O Fatício fala e entende muito bem o espanhol, eu ainda entendo nível Intermediate 2 e falo Beginner 3, mas no Paraguai a língua nativa, majoritária, é o guarani, que todos sabem falar e em muitos locais há mesclas indecifráveis das duas línguas (fora a nossa dificuldade em entender os sotaques e dialetos do interiorzão deles).
Há um paradoxo nos guetos sociais que faz seus moradores terem uma consciência mais ampla do “todo” do que as pessoas que vivem nos centros de poder, em geral voltadas pra si mesmas e acuadas pelo temor às “margens”sociais. Um exemplo claro é a quantidade de línguas que um estado-unidense comum fala, isto é, apenas o inglês, ao passo que um brasileiro médio deve saber o português e o inglês. Os paraguaios, além do guarani e do espanhol, aprendem desde cedo nas escolas, pelos canais de televisão e pelas músicas de fora também o inglês e o português. Da mesma forma, 3 ou 4 moedas circulam dentro do território paraguaio: o dólar, o real, o peso argentino e o guarani.
Antes de chegarmos ao nosso primeiro destino um guarda de estrada parou o Fabrício; eu vinha atrás e cheguei após uns tantos segundos de conversa. Com a mão apoiada no guidão da bicicleta do Fatício, como quem tivesse interesse na viagem mas também pra impedir que continuássemos, e com um olhar estrábico que não era de nascença, mas pela profissão (um olho mirava o Fatício, enquanto o outro circulava pela bike em busca de alguma brecha), ele nos perguntava “De onde vem?”, “O que vieram fazer aqui?”, “Pra onde vão?”, “Estão com a documentação em ordem?”, e cada pergunta assumia um tom ambíguo, ao mesmo tempo de curiosidade mas em busca de qualquer mote pra uma acusação que rendesse a ele alguma grana. Como Deus tá conosco a interrogação não seguiu muito além disso e fomos liberados.
CAMPO NUEVE 26/2/2012
Na noite anterior à nossa entrada no Paraguai não sabíamos ao certo em que cidade pararíamos na primeira noite, pois tanto no Google quanto nos mapas de que dispúnhamos imensas regiões do território paraguaio estavam em branco, como se não houvesse nenhum povoamento por lá ou, o que é mais provável, não houvessem sido mapeadas. Ainda assim constava o nome de uma cidade (que talvez fosse um povoado, uma vila…) chamada Dr. Eulogio Estigarribia, sem muitos mais detalhes além do nome e localização aproximada.
Chegamos quase anoitecendo em Estigarribia, que todos seus moradores conhecem por Campo Nueve. Uma barulheira, dezenas de carros e centenas de motos e pessoas nas beiras da estrada ouvindo forró universitário e outras músicas da moda no verão brasileiro, bebendo cerveja e jogando espuma de spray uns nos outros, tudo isso os festejos do Carnaval deles. Como em qualquer lugar por onde passamos chamamos muito a atenção das pessoas, e logo uns 5 ou 6 meninos começaram a acompanhar a gente também em bicicleta. Uns metros pra frente, paramos pra conversar com os meninos e logo juntaram-se mais pessoas, até que no meio do bololô de gente apareceu um brasileiro com jeitão de lenhador ou açougueiro. Blá blá blá e nos convidou pra passarmos a noite na sua casa, seguiríamos a moto dele até sua casa. Me perdi pelo caminho de paralelepípedos que fazia a bicicleta rodar com dificuldade e liguei pela primeira vez o rádio que comprei com o Fatício em Ciudad del Leste, nos comunicamos e logo vieram me resgatar. Montamos a barraca no quintal da casa, num gramado com uma árvore, um cachorro bravo preso numa casinha ao fundo, um tanto de lixo espalhado pelo chão e três coelhos brancos sujos de terra vermelha. Fiz uma pergunta meio fofucha ao nosso anfitrião (que não consigo me lembrar o nome, chamarei de C.) sobre os coelhinhos, e ele respondeu: “Isso aí é carniça!”.
- Nosso anfitrião brasileiro em Campo Nueve
Carniça ainda viva em Campo Nueve
A criançada em Campo Nueve me ajudando a encher o travesseiro inflável e o isolante térmico
Logo depois que montamos a barraca no quintal, C. nos chamou pra sala da casa, pra vermos e conversarmos com um de seus 4 filhos que há poucas semanas havia se acidentado de moto na Ruta 2 e por pouco não morreu. O menino, de uns 20 anos, magro até o osso e costurado da cabeça aos pés, contava junto com a mãe e o pai sobre os mais de 200 km que percorreram entre e a vida e morte até chegarem em Assunción pra que fosse atendido num hospital. Enquanto eu via as feridas do menino, e morto de fome pela pedalada do dia, tive que me retirar da sala quando senti minha pressão baixar, por muito pouco não desmaiei ali mesmo. C. disse que garantiria nosso jantar, mas após mais de uma hora de espera veio com um sanduíche bastante pequeno pra nossa fome, um pra cada um. É claro que reconheço sua boa intenção e agradeço, mas comida é o nosso combustível, precisamos comer com regularidade, o nosso suficiente e bem, na medida do possível. Reféns da sua boa intenção, dormimos com fome.
Nos impressionou como todos os filhos de C., assim como muitas outras crianças paraguaias que viríamos a conhecer, sabiam tudo de nomes, marcas, configurações, novidades e outros detalhes de aparelhos eletrônicos e tinham muita fluência pra mexer em celulares, rádios, mp3, provavelmente pela proximidade com Ciudad del Leste e pelas peculiaridades fiscais do Paraguai. Ainda à noite, conversamos com C. sobre algumas figuras nada paraguaias e muito fechadas que vimos morando em casas mais bem construídas do que o normal em longos trechos que percorremos no primeiro dia. C. nos explicou que eram canadenses ou americanos, que os paraguaios chamam de “menonitas”, com comunidades por quase todo o Paraguai (inclusive nos Chacos) e particularmente naquele trecho. São gente totalmente voltada para o trabalho, pra produção, nada festivos e muito pouco abertos à integração com o restante do país, mas como garantem os impostos das regiões que habitam são bem vindos pelo poder local. No café da manhã do dia seguinte iríamos comer na loja de uma fábrica de laticínios que abastece todo o Paraguai, pertencente a menonitas, e que ficava a poucos metros na estrada de onde dormimos. Comemos, digerimos e partimos.
SAN JOSÉ DE LOS ARROYOS 27/2/2012
Após os 5 dias de descanso em Foz do Iguaçú, voltar a pedalar me pareceu um pouco pesado, não sei se as pernas tinham enfraquecido, se as compras no Paraguai tavam pesando demais ou se havia mesmo algum problema na bicicleta. E já no início do segundo dia de pedalada pelo Paraguai esse peso continuava, ainda que nas pausas pra beber água, tirar fotos ou comer um quitute o Fatício me falasse: “Que gostoso pedalar hoje, não?”. Não, Fatício, não estava! Após uns 30 km de uma distância de mais ou menos 110 km que perorreríamos até San José de los Arroyos, vendo o Fatício tomar a dianteira a perder de vista (costumamos pedalar, mesmo que às vezes distantes, num ritmo semelhante) e sentindo as pernas desgastando-se ainda que pedalando em retas totalmente planas, eu já tinha certeza de que minha bicicleta estava com algum problema, provavelmente nas rodas. Foi questão de tempo até ouvir um estalo: um raio do pneu traseiro se rompeu e já era o segundo na viagem.
Já escrevi no blog que há algum sofrimento nesse tipo de viagem; depois reescrevi a idéia, dizendo que se há sofrimento e porque há também algum problema; vou reescrever pela terceira vez, só alterando a ordem das palavras: se há um problema, há então sofrimento. Puta merda, sofri nesse dia! Xinguei por horas Zeus, Thor, Walter de Maria, Pirelli, qualquer deus, homem, empresa ou fabricante que tivesse a ver com raios. E o fato de estarmos numa estrada plana talvez só piorasse o que já tava ruim, eu era obrigado a pedalar o tempo todo pra me deslocar, com a roda quase oval de tão desalinhada, e travando costantemente nos freios. Cheguei de péssimo humor em San José de los Arroyos, onde após arranjarmos um espaço sob uma tenda num quintalzão anexo a uma igreja pra montarmos a barraca, saí pra tentar achar uma bicicletaria que pudesse resolver o problema. Fui e voltei toda a extensão da cidade umas 4 vezes seguindo a orientação de pessoas que me diziam onde haveriam “talleres”(oficinas), mas invariavelmente eram para motos. Muito raramente vimos bicicletas no interior do Paraguai, e quando haviam eram muito simples, não tinham nem marcha. Como o comércio já estava fechando, fui obrigado a deixar pra resolver o problema na manhã do dia seguinte. Com o sono leve, eu acordava constantemente no meio da noite, ou de bobeira ou com um bando de cachorros que ficavam apavorando ao redor da nossa barraca durante a madrugada.
Duas opções de almoço na estrada: ou macarrão com molho e carne, ou mandiocas cozidas sem sal e frango frito, ambos pratos em porções muito menores do que costumávamos comer no Brasil. Pra beber, Fanta-abacaxi.
Barraca armada nos fundos da Igreja de San Jose de los Arroyos
Taller de motos em San Jose de los Arroyos
O culto às motos no Paraguai
Acordamos e logo fui buscar um novo taller. Havia a informação de um único mecânico de bicicletas na cidade, mas tivemos que esperar um bom tempo até que ele aparecesse na sua oficina, uma casa de um cômodo, de tijolo exposto, na beirada de um terreno abandonado e sem nenhuma indicação sobre o que se tratava o espaço. Quando o mecânico chegou, disse que sim, conseguiria arrumar o raio. Acompanhei de perto a gambiarra que ele fez, ao fim eu lhe disse que aquela solução não serviria pra mim, que acabaria rompendo mais raios, e ele aceitou que eu não pagasse. Nada resolvido, e eu pagava o preço de ter escolhido viajar com uma bicicleta com ítens que eu considerava simples, corriqueiros, de fácil acesso (como as marchas, as coroas), mas as circunstâncias provavam que eu estava errado.
Menina linda e muito bacana com quem fiquei conversando enquanto aguardava o mecânico de bicicletas aparecer
Mecânico de bicicletas em San Jose de los Arroyos
Senhora paraguaia vendendo erva para tereré na rua
Erva para tereré à venda em porta de casa em S.J. Arroyos
Faltavam pouco mais de 100 km até Assunción, e já eram quase 10 da manhã. Decidi junto com o Fabrício que ele seguiria de bicicleta, e eu faria o trecho num ônibus, levando a bicicleta e as bagagens no bagageiro. Ligamos nossos rádios, anotei o contato da pessoa que nos hospedaria pelo couchsurfing em Assunción, Fatício partiu e, como vi que passavam ônibus pra Assunción a uma frequência bastante regular (o tempo de viagem do ônibus seria de 2 horas, de bicicleta umas 7 horas), decidi relaxar o stress convencendo uma moça que trabalhava numa vendinha a me vender e preparar um tereré. É curioso como o tereré, muito mais que uma bebida para os paraguaios mas um verdadeiro elemento de união e integração entre famílias e comunidades, e abundante por todo o país, não é comercializável como bebida. E como o tereré não se bebe sozinho, sentei-me pra conversar e beber com dois moços locais muito gente finas, treinando meu espanhol, perguntando de tudo um pouco e esperando o ônibus chegar.
Tereré: água geladíssima, neste caso preparada junto com umas ervas digestivas, a ser despejada pouco a pouco no corno com a erva do tereré
O primeiro ônibus quis me cobrar um abuso pra levar a bicicleta, o segundo parou depois saiu andando sem dar explicações, o motorista do terceiro foi solícito, não cobraria nada pra levar a bicicleta mas estava sem espaço no bagageiro. Peguei o quarto ônibus. só paguei a passagem e passei a viagem realmente lamentando estar fazendo aquele trecho dentro de um ônibus, que me dava a sensação de estar assistindo a uma televisão com alguma interatividade.
ASSUNCIÓN 28/2/2012 a 3/3/2012
Cheguei na rodoviária de Assunción umas 15:00, e assim que estava com a bicicleta pronta já busquei me informar com taxistas onde havia uma bicicletaria que pudesse resolver meu problema de raio partido. A avenida que passava em frente à rodoviária era um tanto caótica, e era nela mesma, há uns dez quarteirões da rodoviária, onde me disseram que havia uma bicicletaria. Chegando lá o único mecânico estava de saída e não voltaria no mesmo dia. Tive que pedalar no sentido contrário da mesma avenida mais um 25 quarteirões até chegar numa outra bicicletaria onde me disseram que não tinham a ferramenta para abrir a catraca e trocar corretamente o raio rompido. Mas nessa segunda bicicletaria havia um homem, o Santiago, que morou por anos no Brasil e se dispos a me ajudar, primeiro me emprestando seu celular para que eu ligasse para o Giulio, nosso anfitrião pelo couchsurfing em Assunción. Após avisar o Giulio de que eu já estava na cidade, o Santiago propôs levar-me de carro até o apartamento do Giulio, que ficava na região central da cidade. Seu filho, o Lucas, veio junto no banco de trás, segurando a bicicleta para que não caísse do porta-malas aberto.
Chegando ao endereço do Giulio, um prédio bem na região central onde pareciam viver pessoas com renda muita acima da média paraguaia, agradeci e me despedi do Santiago e de seu filho, o Lucas, e conheci o Giulio, que estava me esperando na portaria e me ajudou a levar as bagagens para cima. O Giulio, além de trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de Assunção, era editor de uma televisão local, então trabalhava muito e também era muito entendido das coisas, um anfitrião cujas conversas conosco eram sempre muito ricas. Dividia o apartamento com mais dois caras, e já recebeu dezenas de pessoas em sua casa pelo couchsurfing, até mesmo outro ciclista que pretendia percorrer o mundo todo.
Giulio, pouco antes de começar a tocar com a Sinfônica de Assunción
Pouco antes de escurecer o Fabricio chegou e, depois do banho, ambos preparamos o espaço onde dormiríamos na sala do apartamento. À noite o Giulio nos chamou pra tomarmos uma cerveja num pub que ficava no mesmo quarteirão do seu prédio e que frequentava quase diariamente, e como passaríamos mais 3 dias sem pedalar não haveria problema em tomar umas (tantas). Andar com o Giulio pela rua e pelo pub nos dava a sensação de estarmos andando com uma figura pública, quase todo mundo o cumprimentava, ele cumprimentava a todo mundo, nos apresentava a quase todos, e lhes contava nossa saga enquanto consultava no balcão do pub quanto estava devendo pelas noites anteriores e pedia mais uma cerveja e uma porção de petiscos monstruosa de tão grande. Comemos, bebemos, sem pensar muito nos valores, mas eu confesso que fiquei com medo da conta no final. Mas uma vantagem de se estar bastante bem fisicamente, pelo exercício quase diário na bicicleta, era que bebendo pouco já ficávamos bem belezura, então gastávamos menos grana pra beber e também ferrávamos menos o corpo.
Se já não bastasse o tanto de sorte que temos tido frequentemente ao longo da viagem, a certa altura da noite o volume da música no pub baixou e veio uma garçonete gritando um número; um cara foi sorteado e ganhou o equivalente a uns 100 reais em consumação. Na sequência a garçonete anunciou um novo número, e o mesmo cara foi sorteado pela segunda vez, não houve quem não tenha pensado que ou ele era muito sortudo ou filho do dono ou namorado da garçonete. Ela anunciou o terceiro e último sorteado da noite, olhei o papelzinho que estava comigo e acabei cobrindo com o prêmio não só toda nossa conta do dia mas também a dívida anterior do Giulio com o pub.
Assunción é uma cidade que tem todos os elementos indispensáveis para uma cidade grande: trânsito caótico, violência urbana, concentração de grana em áreas nobres da cidade, favelas e zonas periféricas criminalizadas, comércio abundante, comunicação com o resto do mundo. Haviam também casas noturnas, grafiteiros, lojas de tatuagem, lan-houses, centros de estética, shoppings, lojas de carro importado, parques, clubes, hotéis, bares, embaixadas e consulados, grandes avenidas, limpadores de pára-brisa e acrobatas nos faróis, e uma imensa região periférica. A diferença fundamental em relação a uma cidade como São Paulo é a escala, então em Assunción nos sentíamos de certa forma “em casa”. Assistimos a concertos musicais (com o Giulio tocando com a orquestra da cidade); o Fabrício assistiu a uma peça de teatro na Plaza de los Heroes (no feriado que comemorava os heróis da pátria); comíamos refeições de madrugada no Lido Bar, um reduto da boemia e classe artística de Assunção e que se assemelha muito ao Bar do Estadão em São Paulo (com a diferença de que no Lido só há mulheres, no balcão, na cozinha e no caixa); acabei encontrando uma bicicletaria que resolveu meu problema de raios a um preço irrisório.
Talvez valha então buscar o que a diferencia de outras grandes metrópoles globais, mas sinceramente não me vem à mente nada que a particularize além do que já é característico do Paraguai como um todo, como o Rio Paraná que atravessa todo o sul do país, o consumo constante de tereré, o patriotismo meio tradicionalista, a afirmação reiterada de uma identidade nacional a partir de tradições que a muito custo ainda sobrevivem (como por exemplo os violeiros), e também a partir de símbolos nacionais meio desgastados, o maior de todos na figura onipresente do Mariscal Solano Lopez, “herói” paraguaio que no entanto, com seus delírios imperialistas, levou o país à bancarrota com a Guerra do Paraguai.
Vista da janela do apartamento do Giulio em Assunção, onde se vê parte da região central e o Rio Paraná ao fundo.
Grafite que vimos ser pintado na noite anterior a essa foto. Os grafiteiros nos explicaram que nesse quarteirão viveu o escritor vanguardista Augusto Roas Bastos, autor de "Yo, el Supremo", considerada uma das obras capitais em língua espanhola e pouquíssimo conhecida.
Caminhando por Assunção
À noite no Bar Lido, depois do concerto da orquestra municipal, pedindo uma "sopa paraguaia" (que é uma espécie de torta bem consistente)
Caminhando com o Giulio pelo clube de esportes às margens do Rio Paraná
Dedicamos nosso último dia em Assunção praticamente só pra escrever textos pro blog ou resolver assuntos na internet, e na manhã do domingo partimos em direção a Quindii, já na Ruta 1, estrada mais tranquila e que liga Assunção a Encarnación, nosso último destino no Paraguai.
* Procurem no youtube ou baixem no Soulseek, do disco “Guaxo” da Helena Meirelles a faixa 15 – Fazenda Jararaca, e a faixa 16 – Sobre Boiadeiros e Bordéis, pra saberem mais. E pra ouvirem ela tocando e cantando em guarani uma canção que fala sobre o Mariscal Solano López, a faixa 9 – Cerro Corá, do mesmo disco.