Mais sobre os primeiros dias no Paraguai

Me esqueci de contar, na postagem sobre os dias no Paraguai, que desde nossos primeiros dias por lá até os últimos eu costumava perguntar aos paraguaios que conhecíamos qual a impressão que tinham sobre os brasileiros, tanto historicamente quanto atualmente.

No início eu fazia essa pergunta carregando algum sentimento de culpa, tendo em mente principalmente o massacre do povo paraguaio pela Tríplice Aliança na Guerra do Paraguai. Pouco a pouco se juntavam a essa mesma pergunta a questão dos brasiguaios,  brasileiros donos de terras na fronteira entre o nordeste paraguaio e o centro-oeste brasileiro. Por fim, após me frustar mais de uma vez buscando ouvir música paraguaia ao sintonizar as rádios locais e só encontrando Michel Teló, Tchererê-tchê-tchê, funk carioca e sertanejo universitário, também me interessava saber dos paraguaios o que achavam da presença constante de músicas comercias, canais de televisão brasileiros e novelas da Globo, presentes em todo o país.

É claro que minha pergunta era um tanto tendenciosa (assim como esse texto) e forçava uma resposta imensamente genérica; mesmo assim, não ouvi de nenhum paraguaio qualquer reprovação aos brasileiros, e sim, quase sempre, admiração. Sem ignorar a vocação imperialista do Brasil, paraguaios, uruguaios e argentinos com quem já cruzei por aí admiram a “potência produtiva brasileira”, e de alguma maneira respeitam o atual papel de liderança local que o Brasil exerce na América Latina, e particularmente entre os países do Mercosul. É curioso como, no entanto, somos frequentemente confundidos com americanos, canadenses ou alemães: “Se fosse americano eu não ajudava!” – ouvi mais de uma vez.

Escutei de um argentino num camping uruguaio: “O Brasil é um fenômeno!”; de um paraguaio em Assunción que me falava das mulheres brasileiras, disse que sabem o que querem e o que não querem, e buscam o que querem com objetividade, mas sem deixar de brincar (“jugar”), em seguida malhou as mulheres argentinas; os caminhoneiros paraguaios e uruguaios também contam histórias das amizades que tiveram e têm com os caminhoneiros brasileiros.

Seria só no Uruguai onde eu ouviria pela primeira vez alguma ressalva aos brasileiros, pelo Alfredo, um uruguaio a quem fomos pedir informação na estrada no nosso primeiro dia de pedal pelo país. Aos nos recomendar conhecer Colônia del Sacramento, única cidade uruguaia de colonização portuguesa, o Alfredo disse que hoje o Brasil tem assumido o mesmo papel que os portugueses já cumpriram no passado, “mas pacificamente”.

Numa das muitas conversas com o Giulio, paraguaio que nos hospedou pelo couchsurfing em Assunción, fiquei PASSADO!! quando nos contou de um episódio recente da diplomacia brasileira que eu desconhecia: após o fim da Guerra do Paraguai, os “vencedores” (Brasil, Argentina e Uruguai) literalmente saquearam tudo que acharam por direito do território paraguaio; não seria exagero dizer que a memória material do povo paraguaio se encontra há 150 anos sequestrada. Em 2009 o Governo Lula reavaliou todos esses arquivos e objetos roubados, a fim de julgar se conviria abrir esses documentos publicamente ou devolvê-los ao Paraguai (a exemplo de Argentina e Uruguai, que devolveram o que guardavam recentemente).  Por fim, a diplomacia brasileira decidiu por seguir mantendo consigo esses documentos, a seu ver “comprometedores”. Um paraguaio que queira ter acesso a esses documentos, quase todos guardados no Palácio do Itamaraty em Brasília, não tem permissão; no entanto, um brasileiro tem acesso a eles, entre os quais documentos históricos relativos à independência do Paraguai em 1810, artefatos da cultura guarani anterior à chegada dos espanhóis, registros de canções paraguaias, e o que mais me impressionou: um enorme canhão conhecido como “Canhão Cristão” ou “El Cristiano”, feito pelos paraguaios a partir da fundição de vários sinos de suas igrejas para fazer frente ao poder de fogo da Tríplice Aliança e depois capturado como troféu de guerra pelo exército brasileiro. Esse canhão encontra-se hoje no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e é para os paraguaios um símbolo de sua resistência durante a guerra (fui buscar na internet mais informações sobre esse caso e parece que o Brasil devolverá pelo menos o canhão, o resto segue no Itamaraty indefinidamente).

 

El Cristiano

 

Me desculpem pelo tom generalizante e tendencioso do texto, não deu pra sair de outro jeito, e tudo é realmente mais sutil e com mil mais variáveis do que eu faço parecer no texto. Agora, o que os paraguaios, uruguaios e brasileiros tem me dito sobre os argentinos é DRAMA!!, e vai ficar pra outra postagem.

 

Missiones, Corrientes e volta ao Brasil.

Terminado o trecho do Paraguai, cruzamos para o lado argentino com as bikes num busão lotado e chegamos em Posadas num domingo à noite, se me lembro bem.

Como levar uma bike quando o exército proíbe a passagem.

Posadas, capital da Província de Misiones, tem exatamente a mesma pegada de todas as cidades médias ou grandes argentinas que encontrei até aqui. Quadras quadradinhas, de 100 metros cada. Cafés, parrillas, bancos, praça central, chineses… Fomos parar nos bombeiros da cidade, desavisados de que eram militares. Até aqui, todo o contato com os militares da Argentina pode ser qualificado como péssimo (vide a proibição de atravessar com a bicicleta) e no caso dos bombeiros da cidade de Posadas não foi diferente. Perguntados se poderíamos passar duas noites no quartel, o bombeiro lançou um “no hay drama” e fomos direcionados a um quarto de entulhos. Nele, estava um desses carrinhos de mão que se usa para carregar pesos grandes e um monte de coisas velhas do bombeiros. Arrumamos um canto pra dormir no mínimo espaço que havia e passamos a noite no local. No meio da noite, uma pessoa veio retirar o carrinho de mão e vi que era o outro ciclista sobre que os bombeiros tinham avisado.

Carrinho em que o Moizés levava as coisas dele.

Já em Encarnación, o secretário de esportes da cidade avisara que estava um ciclista equatoriano na cidade, mas não o tínhamos encontrado. Moisés era o nome do primeiro cicloviajante que encontraríamos. Um cara estranhíssimo, não só pela adaptação grosseira que fez no seu equipamento para sua viagem de bike, mas também por uma série de encanações com defesa pessoal (como ter um estilingue e treinar quedas da bike) que nunca foram (nem acho que serão) uma preocupação nossa ao longo da viagem. A princípio falou que queria fazer um record no Guinness, depois disse que pegava carona com frequência. Enfim, com o Moisés, ficou claro pra mim o que pode acontecer quando nos isolamos por muito tempo das pessoas.

A noite continuaria longa, quando às 6h30 da manhã um bombeiro veio pedir que nos apresentássemos ao comandante. Desci e qual não foi a surpresa ao saber que o tal comandante ainda não tinha chegado. Voltei a dormir e lá pelas 7h30 o mesmo soldado veio nos chamar pra fazer a apresentação. Descemos, dessa vez os dois, e o tal comandante ainda não havia chegado. Era só pra causar transtorno que a tal apresentação era solicitada. Entendemos o recado, arrumamos as coisas e seguimos pro centro, em busca da secretaria de esportes.

Isso de estar aberto a qualquer coisa que possa acontecer e de às vezes não ter mais alternativas, muitas vezes nos deixa sem uma perspectiva clara de como será o final do dia. Mas acho que é exatamente isso, o esvaziamento das possibilidades concretas, que nos faz chegar a outro lugar de abertura com as pessoas. No caminho da secretaria, uma mulher nos perguntou de onde vínhamos e fez questão de nos acompanhar até o gabinete do secretário de esportes da cidade. Menos de meia hora depois de sermos quase expulsos pelos bombeiros, eu estava tomando um mate com o secretário de esportes da cidade. Ele nos daria alojamento no anfiteatro da cidade por quantos dias quiséssemos.

Secretário de Esportes e a mulher que conhecemos na rua.

Hotel, casa, cachoeira, quartel do exército, bombeiros, fundos de um estacionamento e agora domiríamos no subsolo de um anfiteatro com vista para o Rio Paraná e a Orla da Cidade de Encarnación. Lugar incrível e inexplicável que tenha um alojamento. Passamos duas noites nesse lugar e pude fazer vários rolês pela cidade.

Vista da Orla de Encarnación, a partir de Posadas.

O que acho que mais me marcou da cidade de Posadas foi a clara distinção de raças que compõem o povo argentino e o povo paraguaio. Foi só cruzar uma ponte e deixamos de ver uma população majoritariamente indígena e passamos a ver sobretudo descendentes de italianos e espanhóis. O que os Argentinos fizeram com os índios dessa região ainda fica como incógnita, mas definitivamente é estranho.

Seguimos então pra cidade de Gobernador Virasoro, já na província de Corrientes. Em Misiones, as estradas tinham acostamento e, apesar do altíssimo movimento de caminhões e das lombadas no acostamento, era tranquilo seguir. No exato momento em que passamos a placa que anunciava a chegada da província de Corrientes, acabaram os acostamentos e tivemos que dividir pista com os caminhões. Foi um dos pedais menos prazerosos que já fiz, no limite de um torcicolo de tanto que tinha que olhar pra traz e descer pro mato com a bike super carregada.

Valeu por avisar!

Lembre-se: Ruta 14, desviar.

Em Gobernador Virasoro falamos com uma pessoa da prefeitura que nos deu abrigo no ginásio da cidade. Aí escutamos sobre a Fábrica de Erva Mate da marca Taragüi, que fica a poucos kilômetros da cidade. No dia seguinte, passamos na fábrica e foi legal conhecer um pouco mais da fixação de Argentinos, Uruguaios e Rio Grandenses pelo mate, uma erva originariamente das américas, consumida antes pelos índios e agora por todos. Voltamos à tarde pra estrada horrorosa e o pedal não rendeu muito. Paramos num posto e decidimos cruzar pro Brasil. Lá pelas 10 da noite saímos em direção a Santo Tomé, porque o fluxo da estrada finalmente tinha baixado. Realmente aí o pedal rendeu e chegamos na fronteira com São Borja lá pelas 2h da manhã.

Depois de buscar informações numa boate, seguimos em direção dos bombeiros que nos receberam e neste ponto começa o trecho do Rio Grande do Sul.

Fim do Paraguai – San Cosme e Encarnación

San Cosme foi um lugar primoroso de visitar pela história das dunas, pelo isolamento e pelas missões jesuíticas de Boaventura. Saímos da cidade depois de dois dias de acampamento e fomos diretamente a Encarnación, terceira maior cidade do Paraguai.

Orla

Ao fundo, a cidade de Posadas, do outro lado do Rio Paraná.

Apesar de bem maior, Encarnación tem um jeitão de cidade do interior do Brasil. Como já comentei no último texto, Encarnación sofreu uma reforma urbana recente, que reconstituiu sua centralidade e inundou uma parte da cidade. Fronteira com a Argentina, a cidade tem um comércio abundante, embora não comprável em escala com o de Ciudad del Leste e uma sensação de segurança inigualável no Paraguai. Não é exagero dizer que Encarnación é o exato oposto dos nossos preconceitos com relação ao Paraguai.

Chegamos à noite e procuramos a prefeitura, que estava fechada. Logo ao lado havia uma delegacia, onde os policiais nos indicaram os bombeiros voluntários amarelos de Encarnación. Sim, a profissão de bombeiro no Paraguai é mais uma predisposição do que profissão propriamente. Do comandante ao que recém entrou para o corpo, todos são voluntários. E ainda existem bombeiros amarelos e azuis, que se separaram nacionalmente em dois grupos de gestões independentes.

No quartel dos bombeiros amarelos

O quartel dos bombeiros amarelos ficava anteriormente na região que foi alagada. O terreno atual era emprestado pela Usina de Yacyretá. Nele, os bombeiros mantém 3 caminhões, todos importados. Um do Japão, um da Inglaterra e um da Holanda. O caminhão inglês tem direção do lado direito do motorista. Impressionante a adaptabilidade dos bombeiros paraguaios.

Nas três noites em que estivemos no quartel, resolvi problemas mecânicos, tomei sorvete pra caramba e dei uma entrevista pra Rádio Encarnación, a primeira da viagem. O filho de um dos locutores estava assistindo, então pedi que ele gravasse a entrevista com meu celular. Ficou meio tremido mas o resultado é esse aqui:

A parte que provavelmente se tornará o principal atrativo turístico de Encarnación é a novíssima orla, construída pela prefeitura com grana da Hidrelétrica de Yacyretá. Exemplo de como a construção do discurso oficial se faz a partir da perspectiva dos vencedores, a orla é enxergada como algo sensacional pela maior parte dos moradores da região.

Claro que fomos de bike pra praia

A tal da Orla

Pertinho de Encarnación, estão as ruínas de Trinidad e Jesús, as últimas que visitamos num dia inteiro de pedal. Infelizmente a quantidade de informações no local das ruínas era insuficiente, jogada que claramente força o visitante a ter que pagar um guia, além de pagar a entrada das ruínas. Fiquei só com as fotos e as interpretações livres. Tá valendo:

Jesús:

Campanário

No penúltimo dia, fomos checar a informação da proibição do cruzamento da ponte entre Encarnación e Posadas para pessoas em bicicleta e a pé. Definitivamente a mais surreal das proibições que encontrei em toda a viagem, esta normativa partir do exército Argentino, “por un tema de seguridad”. Fui até o lado Argentino sem a bicicleta para conversar com o oficial, e ao menos pareceu que ele fez o que pode. Ligou pro seu superior, questionou, mas prevaleceu a proibição. Terminada a conversa, deixei claro pra ele que a proibição era surreal, uma vez que por um “tema de segurança” a bicicleta não oferece risco nenhum. E se o problema era que a bicicleta era lenta, que tal avisar os motoristas de que uma bicicleta lenta vai passar?

Esse foi nosso primeiro contato com o lado argentino.

A experiência das hidrelétricas

Mesmo distante uns 1500 kilômetros da última hidrelétrica do Paraguai, continuo marcado pela experiência de ter visto alguns impactos causados por essas gigantices que fomos, humanos, capazes de produzir. Pra quem ainda não foi apresentado, uma usina hidrelétrica é aquela que gera eletricidade transformando a força da movimentação da água em energia elétrica. O Brasil usa muito essa matriz energética e somos ensinados desde cedo que essa é uma energia limpa.

O que esquecem de comentar, em geral, é que essas usinas são intervenções humanas no rumo das águas. Ou seja, não é possível fazer uma usina hidrelétrica sem afunilar a vazão das águas, de forma que se consiga o máximo de pressão da correnteza e da gravidade, gerando mais energia. A solução pra esse afunilamento em geral é a cisão do curso do rio. Constrói-se uma imensa represa cujo único fim é fazer com que a água ganhe mais força de correnteza e de gravidade. Essa imensa represa constuma cobrir cidades, biomas, comunidades ribeirinhas e, às vezes, litígios históricos, massacres populares e cataratas monumentais.

A usina de Itaipu, maior em geração de energia do mundo, localiza-se no rio Paraná, próximo da fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Leste. Binacional, Itaipu nasce de um acordo entre Brasil e Paraguai e tem sua energia dividida igualmente entre os dois países. O Paraguai usa atualmente somente 8% da capacidade de Itaipu para abastecer 90% de sua população. Os outros 42% a que tem direito são vendidos ao Brasil a valores muito, mas muito abaixo dos valores de mercado. Com seus 50% de direito e os 42% comprados a preço de banana do Paraguai, o Brasil abastece 20% da nossa necessidade elétrica. Por aí já temos uma ideia da desproporção territorial entre os dois países.

Aqui começa uma reflexão: você, que está usando seu computador ou celular pra ler esse post e o microondas pra esquentar uma lazanha congelada, depende de obras faraônicas como Itaipu para existir. Nossa necessidade de energia é diária, constante e obrigatória para a maneira como vivemos. Esse é um das questões das usinas hidrelétricas, elas permitem uma forma de existência muito confortável (para quem pode pagar por energia).

No entanto, o custo ambiental dessa energia é o aumento da temperatura de regiões inteiras (vide os 4 graus que a cidade de Foz do Iguaçu ganhou após a construção de Itaipu), extinção de espécies de peixes que dependem da desova após nadar contra a correnteza (porque obviamente não é possível nadar no sentido inverso das turbinas de energia), expulsão da população que dependia essencialmente da pesca ou indiretamente da fauna da região inundada. Além desses impactos para a população e biomas locais, obras faraônicas, sobretudo no Brasil, são normalmente executadas com condições subhumanas de trabalho, alta quantidade de acidentes e praticamente nenhum planejamento quanto ao que vai ser feito da população que trabalha na sua construção (vide Brasília, a simbólica capital do nosso país).

É curioso notar como alguns dos impactos são previstos na própria construção das usinas, mas a solução deles, mesmo que de forma insuficiente, vem só muito depois da construção. Por exemplo, o curso das águas pode receber um caminho alternativo para que os peixes possam subir a correnteza. Mas no caso de Itaipu, esse caminho só foi feito mais de 20 anos depois do represamento. No caso de Yacyretá – usina hidrelétrica também binacional, também com águas do rio Paraná, mas na fronteira entre Paraguai e Argentina – criou-se uma espécie de elevador de peixes, para fazer a reconexão dos cursos. A população local conta que esse elevador é acionado só em dias de visita de políticos.

Outro impacto óbvio da presença das usinas é o que vai pra baixo d’água. Entre as cidades de Encarnación, no Paraguai, e Posadas, na Argentina, está o final do Rio Paraná, início da represa da usina de Yacyretá. A área às margens do rio foi totalmente inundada nas duas cidades, o que permitiu a transferência de indesejadas favelas, a criação de praias artificiais e o redesenho da centralidade das cidades. Em Encarnación, se você quiser nadar, existem tramos habilitados e inabilidatos. Os primeiros, são aqueles em que há investimento massivo da usina, por meio de ações junto à prefeitura, para que se forme uma espécie de orla artificial que se parece muito com uma cidade praieira. Os inabilitados são aqueles que ainda guardam em suas profundezas as casas de moradores que habitavam a região mais próxima da margem do rio. Seria o mesmo que dizer “não nade aqui, se não quiser pisar em telhados”.

A decisão de onde exatamente colocar as usinas normalmente passa por critérios que não são nada claros. Neste exato momento, o Brasil está construindo uma hidrelétrica na Amazônia (!!!!), local de reservas indígenas, bioma inigualável, tudo isso em Belo Monte, Pará. Antes disso, já construímos uma hidrelétrica que inundou a cidade histórica de Canudos, local onde aconteceu um dos mais importantes movimentos populares de vida comunitária e resistência e, posteriormente, um os maiores massacres populares – orquestrado pelo próprio governo – de nossa história. A própria Itaipu poderia ter sido construída em outros trechos do rio Paraná, inclusive integralmente no Brasil. No entanto, a usina foi construiída na fronteira com o Paraguai, o que dá margem para que vejamos essa decisão como uma espécie de acerto de contas histórico, visto que o Brasil foi um dos protagonistas do genocídio conhecido como Guerra do Paraguai, em que matamos (nós, Argentinos e Uruguaios) 90% da população masculina do Paraguai.

Essa escolha de local inundou também uma das maiores cataratas do mundo. Perto de Itaipu é fácil conseguir informação sobre as sete quedas, e no lado do Paraguai, a mesma cachoeira era conhecida como Salto Guairá. A cidade de Guaíra, no Brasil, fica exatamente ao lado de onde era esta cachoeira, hoje visível somente aos peixes que restaram nessa região. O que se escuta no Paraguai é que essa era uma área de litígio entre Brasil e Paraguai. Como se sabe, o Paraguai perdeu muitas regiões depois da Guerra. A província de Missiones e parte das províncias de Corrientes e de Santa Fé na Argentina eram território paraguaio. A cidade de Cuiabá era território paraguaio. E a região do Salto Guairá também estava entre esses territórios tomados, mas com uma represa monstruosa ninguém tem mais dúvida de onde termina o Paraguai e começa o Brasil.

Nunca veremos

Um dos lugares mais impressionantes que visitei foi a cidade de San Cosme y Damián, Paraguai, que abriga Ruínas Jesuíticas e está à margem da represa de Yacyretá. Neste trecho, são quase 40 kilômetros de uma margem até a outra. Quase no meio da represa, encontram-se dunas que são totalmente inimagináveis a quem olha o mar em que se tornou a represa. Essa dunas eram parte da paisagem nativa, composta por dezenas de ilhas no Rio Paraná. Algumas delas com dunas e a maior parte com vegetação nativa. O que vemos hoje é o que restou: apenas duas dunas, as mais altas, que gradualmente estão sendo carregadas pela represa.

As dunas de San Cosme y Damián ainda são visitáveis. Mas corra, porque ano a ano elas vão perdendo areia para a represa. A pergunta que resta é: quanto vale o nosso conforto? Ou por outra, se falamos em termos de progresso, então progresso de quem? Para onde? A que serve? Usinas hidrelétricas são o tipo de construção que demonstra o quanto estamos plenamente dependentes de uma forma de vida. E será que essa forma de vida fomos nós que escolhemos?

Ps: esse é o tipo de texto que me interessa publicar em outros lugares. Como este, escrevi também, de forma mais ficcional, um texto sobre o Parque do Zizo. Se você souber de publicações onde interessa receber esse tipo de texto, por favor entra em contato.

Ps 2: Pequeno vídeo em que o condutor do barco que nos levou até as dunas comenta sobre como os problemas poderiam ter sido evitados:

Algumas charges e tiras

Antes de retomar as postagens propriamente, cabe tirar alguns esqueletos do armário.
Quando estava para sair em viagem, fiz uma pequena seleção das charges e tiras que mais davam conta da angústia de se manter sempre trabalhando. Hoje, olho pra essas charges com algum distanciamento crítico, e vejo que elas já não me representam mais. Mesmo assim, ainda como uma arqueologia do que eu fui, vale a pena vê-las novamente. Por isso posto-as abaixo.

Primeiro uma do Laerte, quando ele ainda usava os personagens.

Caco Galhardo e o ambiente de trabalho.

Essa aqui abaixo também é do Laerte e foi meu fundo de tela até sair pra viajar.

E essa abaixo eu nunca achei o autor. Se alguém souber, por favor me avise.

Paraguai: a Ruta 2 de Ciudad del Leste a Asunción (de 26/2 a 03/3/2012)

Me diziam ainda em Foz do Iguaçú: cuidado com a comida e a água no Paraguai, eles são sujos, não tem cuidado com a comida, cagam na rua; também cuidado com a polícia paraguaia, são extremamente corruptos, só há diálogo na base da propina; é território de ladrões e larápios, os carros não tem placa, as estradas não tem lei; há guardas armados nas portas de comércios, restaurantes, edifícios residenciais, um climão de bang-bang ; os paraguaios tem a boca cheia de dentes de ouro pra substituir dentes podres, o sistema de saúde do país é muito precário, se eu me acidentasse na estrada não haveria hospital por perto. E como muitos dos brasileiros com quem eu convivia, eu nutria a imagem de um país pobre ou paupérrimo, quase uma nação-mendiga, sem estrutura nem qualquer atrativo maior do que fazer compras em Ciudad del Leste (o que nos faz associar, quase que automaticamente, paraguaios com muambeiros, comerciantes de produtos falsos). Eu carregava também a imagem vaga de um país que ainda sofria as consequências da Guerra do Paraguai, ocorrida há quase 150 anos atrás.

A favor do Paraguai eu cultivava o interesse em ouvir de perto a música paraguaia, em particular os violeiros, que conheci um pouco através das composições do Agustín Barrios Mangoré, da influência dos violeiros paraguaios no estilo da Helena Meirelles (uma puta violeira mato-grossense*), e em um ou outro grupo instrumental ou de cantores paraguaios, de nome genérico, que tocavam músicas rancheiras, valsas ou polkas (apesar de saber que tanto no Paraguai como em quase todo país da América Latina de hoje só ouvirei variações de cúmbia). Também a favor, minha enorme ignorância acerca de um país aparentemente sem grandes atrativos naturais, turísticos, culturais, o que me atiçava a curiosidade para ver o que havia por lá. Muitos dos alertas infelizmente se confirmaram, mas com ressalvas; hoje, após duas semanas percorrendo o Paraguai e já quase chegando ao Uruguai, vemos como muitos dos preconceitos que tínhamos caíram por terra, e que muito além da pobreza, da precariedade e das muambas, o Paraguai foi mais um dos lugares onde a renovação dos “valores” que a viagem de bicicleta nos suscita fizeram-nos ver muitas riquezas, algumas inclusive ameaçadas.

Mapa do Paraguai

Explicaram-me que, em geral, um turista que queira visitar o Paraguai percorre um triângulo, que são as rotas entre Ciudad del Leste, Assunción e Encarnación (as 3 maiores cidades paraguaias). Olhando o mapa paraguaio, esse roteiro concentra-se na região sul do país, onde também está concentrada a maior parte de sua população e atividade econômica: toda a região norte, muito maior em extensão territorial, é ao Nordeste ocupada principalmente por fazendas de criação de gado (em grande parte nas mãos de estrangeiros que ali foram morar e trabalhar, como os brasiguaios, americanos, canadenses e outros); e ao Noroeste está o grande Chaco paraguaio, muito árido, quase improdutivo e pouco habitado. Nosso percurso não seria muito diferente ao do turista padrão (com o diferencial de não estarmos motorizados): entraríamos por Ciudad del Leste percorrendo a perigosa Ruta 2 até Assunción, e de lá desceríamos pela Ruta 1 até Encarnación, já na fronteira com a Argentina.

Saímos cedo de Foz do Iguaçú num domingo (sempre um dia propício para sair ou chegar em cidades grandes, há menos movimento nas estradas). A Ruta 2 tem aproximadamente 330 km de extensão num caminho praticamente plano, e pensando em manter nossa média de 100 km de deslocamento por dia, pararíamos duas noite até chegarmos no terceira dia na capital Assunción.

Logo que atravessamos a fronteira paraguaia ouvi meu nome na rua. Da janela de um carro apresentou-se a Sheung, amiga ceramista da minha mãe que mora em Foz e foi nossa primeira opção de hospedagem por lá antes de entrarmos em contato com a Cida Muriana. Não nos conhecíamos, mas minha mãe a tinha informado de que estávamos pela cidade, viajando de bicicleta, a Sheung mesma já tinha visitado o blog e visto fotos nossas; não tinha muito como errar, eu era o Affonso-filho-da-Fátima. A Sheung desceu do carro, em seguida seu filho com a namorada, o marido foi estacionar o carro e veio na sequência. Conversar com eles aliviou um pouco minha tensão de estar entrando em um país novo, numa região perigosa e precária. Perguntei sobre o interior do Paraguai, as condições das estradas, a qualidade da água e da comida, e as informações não fugiram muito ao que o Xande Muriana e outros haviam nos alertado: nas estradas não havia muita lei, vinham motos pela contra-mão no acostamento, o caminho era quase todo de mão-dupla com uma pista só em cada lado, não haviam indicações de velocidade pros carros. Apesar de todo esse cenário, esse encontro com a Sheung me passou muita positividade.

Mesmo sendo domingo, em Ciudad del Leste haviam lojas abertas, telões eletrônicos ligados, motoqueiros circulando e crianças oferecendo-nos para estacionarmos as bicicletas e irmos às compras. Passamos reto todo o miolo comercial da cidade em direção à estrada, e bastaram poucos quilômetros adentro para que se definissem algumas constantes da Ruta 2: ficou intuitivamente claro (pois não havia sinalização que atestasse isso) que a pista era exclusiva para carros, ônibus e caminhões, e que o acostamento dividiríamos com as motos, muitas, vindas das duas direções e constantemente carregando mais de 2 pessoas, inclusive guiadas por jovens de não mais que 14 anos (o que vai contra o ineficiente código de trânsito local); nunca vi tantos animais não só mortos, mas recém-mortos numa só estrada (e aqui volto atrás no que escrevi antes sobre cheiros de animais mortos me devolverem sensações de frescor, era uma nhaca pestilenta); nas laterais da estrada muitas casas com um jardim de uns 20 metros as separando do asfalto, e em muitas delas um comerciozinho que variava entre borracharias pra motos (“gomerias”), sorveterias (“helados”), barraquinhas de empanadas ou chipas (uma espécie de pão de queijo paraguaio), tábuas de madeira sobre as quais ficavam à venda chumaços de erva pra tererê (a mesma erva utilizada no chimarrão gaúcho ou no mate argentino, mas aqui bebem gelado), e em todo canto plaquinhas pintadas à mão anunciando “hay hielo” (há gelo); na frente de praticamente todas as casas, famílias ou vizinhos em roda ou semi-círculos voltados pra estrada, sentados numa cadeira que parece padrão em todo o território paraguaio (e que a Cida Muriana também tinha), conversando e tomando tererê o dia todo, e quase sempre parando a conversa pra nos seguir com o olhar (eu acenava com a mão sempre que podia, e quase sempre respondiam com tchauzinhos, gritos coletivos de “Suerte!”, uma ola de torcida de estádio, sempre muito calorosos); nos gramados entre o asfalto e as casas, uma quadrinha com rede pra jogar vôlei ou fut-vôlei, frequentemente com pessoas jogando (lembrando que era domingo); por todo o Paraguai cartazes, pinturas ou lembretes dos festejos do bicentenário de sua independência, ocorrida em 181o e comemorada em 2010; e, finalmente, muitos bois e vacas, e em menor número bodes e cabras, amarrados ao pescoço por cordas de uns 5 metros presas em estacas na terra ou amarradas em árvores, pastando nas laterais do aslfalto.

Mais um detalhe do tipo técnico, notado pelo Fabrício, é que por todas as estradas que percorremos no Paraguai só utilizamos duas coroas, isto é, o grupo de marchas mais pesadas e eventualmente as médias, nunca as leves, o que atesta que as estradas eram mesmo planas.

Kombi paraguaia (roubei essa imagem do google)

 

Cadeiras coloridas com encostos feitos de plástico emborrachado, muito comuns nos quintais de todas as casas do Paraguai

 

Três meninos que trabalham numa barraquinha de beira de estrada que vendia de tudo um pouco: azeite, arroz, sabonete, gelo...

Na primeira parada pro almoço já tivemos algumas dificuldades com a língua  e com a nova moeda que estávamos usando (o guarani), quase devolvemos o prato já montado por não nos entendermos com o garçom quanto ao preço combinado. O Fatício fala e entende muito bem o espanhol, eu ainda entendo nível Intermediate 2 e falo Beginner 3, mas no Paraguai a língua nativa, majoritária, é o guarani, que todos sabem falar e em muitos locais há mesclas indecifráveis das duas línguas (fora a nossa dificuldade em entender os sotaques e dialetos do interiorzão deles).

Há um paradoxo nos guetos sociais que faz seus moradores terem uma consciência mais ampla do “todo” do que as pessoas que vivem nos centros de poder, em geral voltadas pra si mesmas e acuadas pelo temor às “margens”sociais. Um exemplo claro é a quantidade de línguas que um estado-unidense comum fala, isto é, apenas o inglês, ao passo que um brasileiro médio deve saber o português e o inglês. Os paraguaios, além do guarani e do espanhol, aprendem desde cedo nas escolas, pelos canais de televisão e pelas músicas de fora também o inglês e o português. Da mesma forma, 3 ou 4 moedas circulam dentro do território paraguaio: o dólar, o real, o peso argentino e o guarani.

Antes de chegarmos ao nosso primeiro destino um guarda de estrada parou o Fabrício; eu vinha atrás e cheguei após uns tantos segundos de conversa. Com a mão apoiada no guidão da bicicleta do Fatício, como quem tivesse interesse na viagem mas também pra impedir que continuássemos, e com um olhar estrábico que não era de nascença, mas pela profissão (um olho mirava o Fatício, enquanto o outro circulava pela bike em busca de alguma brecha), ele nos perguntava “De onde vem?”, “O que vieram fazer aqui?”, “Pra onde vão?”, “Estão com a documentação em ordem?”, e cada pergunta assumia um tom ambíguo, ao mesmo tempo de curiosidade mas em busca de qualquer mote pra uma acusação que rendesse a ele alguma grana. Como Deus tá conosco a interrogação não seguiu muito além disso e fomos liberados.

CAMPO NUEVE 26/2/2012

Na noite anterior à nossa entrada no Paraguai não sabíamos ao certo em que cidade pararíamos na primeira noite, pois tanto no Google quanto nos mapas de que dispúnhamos imensas regiões do território paraguaio estavam em branco, como se não houvesse nenhum povoamento por lá ou, o que é mais provável, não houvessem sido mapeadas. Ainda assim constava o nome de uma cidade (que talvez fosse um povoado, uma vila…) chamada Dr. Eulogio Estigarribia, sem muitos mais detalhes além do nome e localização aproximada.

Chegamos quase anoitecendo em Estigarribia, que todos seus moradores conhecem por Campo Nueve. Uma barulheira, dezenas de carros e centenas de motos e pessoas nas beiras da estrada ouvindo forró universitário e outras músicas da moda no verão brasileiro, bebendo cerveja e jogando espuma de spray uns nos outros, tudo isso os festejos do Carnaval deles. Como em qualquer lugar por onde passamos chamamos muito a atenção das pessoas, e logo uns 5 ou 6 meninos começaram a acompanhar a gente também em bicicleta. Uns metros pra frente, paramos pra conversar com os meninos e logo juntaram-se mais pessoas, até que no meio do bololô de gente apareceu um brasileiro com jeitão de lenhador ou açougueiro. Blá blá blá e nos convidou pra passarmos a noite na sua casa, seguiríamos a moto dele até sua casa. Me perdi pelo caminho  de paralelepípedos que fazia a bicicleta rodar com dificuldade e liguei pela primeira vez o rádio que comprei com o Fatício em Ciudad del Leste, nos comunicamos e logo vieram me resgatar. Montamos a barraca no quintal da casa, num gramado com uma árvore, um cachorro bravo preso numa casinha ao fundo, um tanto de lixo espalhado pelo chão e três coelhos brancos sujos de terra vermelha. Fiz uma pergunta meio fofucha ao nosso anfitrião (que não consigo me lembrar o nome, chamarei de C.) sobre os coelhinhos, e ele respondeu: “Isso aí é carniça!”.

 

Nosso anfitrião brasileiro em Campo Nueve

Carniça ainda viva em Campo Nueve

A criançada em Campo Nueve me ajudando a encher o travesseiro inflável e o isolante térmico

Logo depois que montamos a barraca no quintal, C. nos chamou pra sala da casa, pra vermos e conversarmos com um de seus 4 filhos que há poucas semanas havia se acidentado de moto na Ruta 2 e por pouco não morreu. O menino, de uns 20 anos, magro até o osso e costurado da cabeça aos pés, contava junto com a mãe e o pai sobre os mais de 200 km que percorreram entre e a vida e morte até chegarem em Assunción pra que fosse atendido num hospital. Enquanto eu via as feridas do menino, e morto de fome pela pedalada do dia, tive que me retirar da sala quando senti minha pressão baixar, por muito pouco não desmaiei ali mesmo. C. disse que garantiria nosso jantar, mas após mais de uma hora de espera veio com um sanduíche bastante pequeno pra nossa fome, um pra cada um. É claro que reconheço sua boa intenção e agradeço, mas comida é o nosso combustível, precisamos comer com regularidade, o nosso suficiente e bem, na medida do possível. Reféns da sua boa intenção, dormimos com fome.

Nos impressionou como todos os filhos de C., assim como muitas outras crianças paraguaias que viríamos a conhecer, sabiam tudo de nomes, marcas, configurações, novidades e outros detalhes de aparelhos eletrônicos e tinham muita fluência pra mexer em celulares, rádios, mp3, provavelmente pela proximidade com Ciudad del Leste e pelas peculiaridades fiscais do Paraguai. Ainda à noite, conversamos com C. sobre algumas figuras nada paraguaias e muito fechadas que vimos morando em casas mais bem construídas do que o normal em longos trechos que percorremos no primeiro dia. C. nos explicou que eram canadenses ou americanos, que os paraguaios chamam de “menonitas”, com comunidades por quase todo o Paraguai (inclusive nos Chacos) e particularmente naquele trecho. São gente totalmente voltada para o trabalho, pra produção, nada festivos e muito pouco abertos à integração com o restante do país, mas como garantem os impostos das regiões que habitam são bem vindos pelo poder local. No café da manhã do dia seguinte iríamos comer na loja de uma fábrica de laticínios que abastece todo o Paraguai, pertencente a menonitas, e que ficava a poucos metros na estrada de onde dormimos. Comemos, digerimos e partimos.

SAN JOSÉ DE LOS ARROYOS 27/2/2012

Após os 5 dias de descanso em Foz do Iguaçú, voltar a pedalar me pareceu um pouco pesado, não sei se as pernas tinham enfraquecido, se as compras no Paraguai tavam pesando demais ou se havia mesmo algum problema na bicicleta. E já no início do segundo dia de pedalada pelo Paraguai  esse peso continuava, ainda que nas pausas pra beber água, tirar fotos ou comer um quitute o Fatício me falasse: “Que gostoso pedalar hoje, não?”. Não, Fatício, não estava! Após uns 30 km de uma distância de mais ou menos 110 km que perorreríamos até San José de los Arroyos, vendo o Fatício tomar a dianteira a perder de vista (costumamos pedalar, mesmo que às vezes distantes, num ritmo semelhante) e sentindo as pernas desgastando-se ainda que pedalando em retas totalmente planas, eu já tinha certeza de que minha bicicleta estava com algum problema, provavelmente nas rodas. Foi questão de tempo até ouvir um estalo: um raio do pneu traseiro se rompeu e já era o segundo na viagem.

Já escrevi no blog que há algum sofrimento nesse tipo de viagem; depois reescrevi a idéia, dizendo que se há sofrimento e porque há também algum problema; vou reescrever pela terceira vez, só alterando a ordem das palavras: se há um problema, há então sofrimento. Puta merda, sofri nesse dia! Xinguei por horas Zeus, Thor, Walter de Maria, Pirelli, qualquer deus, homem, empresa ou fabricante que tivesse a ver com raios. E o fato de estarmos numa estrada plana talvez só piorasse o que já tava ruim, eu era obrigado a pedalar o tempo todo pra me deslocar, com a roda quase oval de tão desalinhada, e travando costantemente nos freios. Cheguei de péssimo humor em San José de los Arroyos, onde após arranjarmos um espaço sob uma tenda num quintalzão anexo a uma igreja pra montarmos a barraca, saí pra tentar achar uma bicicletaria que pudesse resolver o problema. Fui e voltei toda a extensão da cidade umas 4 vezes seguindo a orientação de pessoas que me diziam onde haveriam “talleres”(oficinas), mas invariavelmente eram para motos. Muito raramente vimos bicicletas no interior do Paraguai, e quando haviam eram muito simples, não tinham nem marcha. Como o comércio já estava fechando, fui obrigado a deixar pra resolver o problema na manhã do dia seguinte. Com o sono leve, eu acordava constantemente no meio da noite, ou de bobeira ou com um bando de cachorros que ficavam apavorando ao redor da nossa barraca durante a madrugada.

Duas opções de almoço na estrada: ou macarrão com molho e carne, ou mandiocas cozidas sem sal e frango frito, ambos pratos em porções muito menores do que costumávamos comer no Brasil. Pra beber, Fanta-abacaxi.

Barraca armada nos fundos da Igreja de San Jose de los Arroyos

 

Taller de motos em San Jose de los Arroyos

 

O culto às motos no Paraguai

Acordamos e logo fui buscar um novo taller. Havia a informação de um único mecânico de bicicletas na cidade, mas tivemos que esperar um bom tempo até que ele aparecesse na sua oficina, uma casa de um cômodo, de tijolo exposto, na beirada de um terreno abandonado e sem nenhuma indicação sobre o que se tratava o espaço. Quando o mecânico chegou, disse que sim, conseguiria arrumar o raio. Acompanhei de perto a gambiarra que ele fez, ao fim eu lhe disse que aquela solução não serviria pra mim, que acabaria rompendo mais raios, e ele aceitou que eu não pagasse. Nada resolvido, e eu pagava o preço de ter escolhido viajar com uma bicicleta com ítens que eu considerava simples, corriqueiros, de fácil acesso (como as marchas, as coroas), mas as circunstâncias provavam que eu estava errado.

Menina linda e muito bacana com quem fiquei conversando enquanto aguardava o mecânico de bicicletas aparecer

 

Mecânico de bicicletas em San Jose de los Arroyos

 

Senhora paraguaia vendendo erva para tereré na rua

Erva para tereré à venda em porta de casa em S.J. Arroyos

Faltavam pouco mais de 100 km até Assunción, e já eram quase 10 da manhã. Decidi junto com o Fabrício que ele seguiria de bicicleta, e eu faria o trecho num ônibus, levando a bicicleta e as bagagens no bagageiro. Ligamos nossos rádios, anotei o contato da pessoa que nos hospedaria pelo couchsurfing em Assunción, Fatício partiu e, como vi que passavam ônibus pra Assunción a uma frequência bastante regular (o tempo de viagem do ônibus seria de 2 horas, de bicicleta umas 7 horas), decidi relaxar o stress convencendo uma moça que trabalhava numa vendinha a me vender e preparar um tereré. É curioso como o tereré, muito mais que uma bebida para os paraguaios mas um verdadeiro elemento de união e integração entre famílias e comunidades, e abundante por todo o país, não é comercializável como bebida. E como o tereré não se bebe sozinho, sentei-me pra conversar e beber com dois moços locais muito gente finas, treinando meu espanhol, perguntando de tudo um pouco e esperando o ônibus chegar.

Tereré: água geladíssima, neste caso preparada junto com umas ervas digestivas, a ser despejada pouco a pouco no corno com a erva do tereré

O primeiro ônibus quis me cobrar um abuso pra levar a bicicleta, o segundo parou depois saiu andando sem dar explicações, o motorista do terceiro foi solícito, não cobraria nada pra levar a bicicleta mas estava sem espaço no bagageiro. Peguei o quarto ônibus. só paguei a passagem e passei a viagem realmente lamentando estar fazendo aquele trecho dentro de um ônibus, que me dava a sensação de estar assistindo a uma televisão com alguma interatividade.

ASSUNCIÓN 28/2/2012 a 3/3/2012

Cheguei na rodoviária de Assunción umas 15:00, e assim que estava com a bicicleta pronta já busquei me informar com taxistas onde havia uma bicicletaria que pudesse resolver meu problema de raio partido. A avenida que passava em frente à rodoviária era um tanto caótica, e era nela mesma, há uns dez quarteirões da rodoviária, onde me disseram que havia uma bicicletaria. Chegando lá o único mecânico estava de saída e não voltaria no mesmo dia. Tive que pedalar no sentido contrário da mesma avenida mais um 25 quarteirões até chegar numa outra bicicletaria onde me disseram que não tinham a ferramenta para abrir a catraca e trocar corretamente o raio rompido. Mas nessa segunda bicicletaria havia um homem, o Santiago, que morou por anos no Brasil e se dispos a me ajudar, primeiro me emprestando seu celular para que eu ligasse para o Giulio, nosso anfitrião pelo couchsurfing em Assunción. Após avisar o Giulio de que eu já estava na cidade, o Santiago propôs levar-me de carro até o apartamento do Giulio, que ficava na região central da cidade. Seu filho, o Lucas, veio junto no banco de trás, segurando a bicicleta para que não caísse do porta-malas aberto.

Chegando ao endereço do Giulio, um prédio bem na região central onde pareciam viver pessoas com renda muita acima da média paraguaia, agradeci e me despedi do Santiago e de seu filho, o Lucas, e conheci o Giulio, que estava me esperando na portaria e me ajudou a levar as bagagens para cima. O Giulio, além de trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de Assunção, era editor de uma televisão local, então trabalhava muito e também era muito entendido das coisas, um anfitrião cujas conversas conosco eram sempre muito ricas. Dividia o apartamento com mais dois caras, e já recebeu dezenas de pessoas em sua casa pelo couchsurfing, até mesmo outro ciclista que pretendia percorrer o mundo todo.

Giulio, pouco antes de começar a tocar com a Sinfônica de Assunción

Pouco antes de escurecer o Fabricio chegou e, depois do banho, ambos preparamos o espaço onde dormiríamos na sala do apartamento. À noite o Giulio nos chamou pra tomarmos uma cerveja num pub que ficava no mesmo quarteirão do seu prédio e que frequentava quase diariamente, e como  passaríamos mais 3 dias sem pedalar não haveria problema em tomar umas (tantas). Andar com o Giulio pela rua e pelo pub nos dava a sensação de estarmos andando com uma figura pública, quase todo mundo o cumprimentava, ele cumprimentava a todo mundo, nos apresentava a quase todos, e lhes contava nossa saga enquanto consultava no balcão do pub quanto estava devendo pelas noites anteriores e pedia mais uma cerveja e uma porção de petiscos monstruosa de tão grande. Comemos, bebemos, sem pensar muito nos valores, mas eu confesso que fiquei com medo da conta no final. Mas uma vantagem de se estar bastante bem fisicamente, pelo exercício quase diário na bicicleta, era que bebendo pouco já ficávamos bem belezura, então gastávamos menos grana pra beber e também ferrávamos menos o corpo.

Se já não bastasse o tanto de sorte que temos tido frequentemente ao longo da viagem, a certa altura da noite o volume da música no pub baixou e veio uma garçonete gritando um número; um cara foi sorteado e ganhou o equivalente a uns 100 reais em consumação. Na sequência a garçonete anunciou um novo número, e o mesmo cara foi sorteado pela segunda vez, não houve quem não tenha pensado que ou ele era muito sortudo ou filho do dono ou namorado da garçonete. Ela anunciou o terceiro e último sorteado da noite, olhei o papelzinho que estava comigo e acabei cobrindo com o prêmio não só toda nossa conta do dia mas também a dívida anterior do Giulio com o pub.

Assunción é uma cidade que tem todos os elementos indispensáveis para uma cidade grande: trânsito caótico, violência urbana, concentração de grana em áreas nobres da cidade, favelas e zonas periféricas criminalizadas, comércio abundante, comunicação com o resto do mundo. Haviam também casas noturnas, grafiteiros, lojas de tatuagem, lan-houses, centros de estética, shoppings, lojas de carro importado, parques, clubes, hotéis, bares, embaixadas e consulados, grandes avenidas, limpadores de pára-brisa e acrobatas nos faróis, e uma imensa região periférica. A diferença fundamental em relação a uma cidade como São Paulo é a escala, então em Assunción nos sentíamos de certa forma “em casa”. Assistimos a concertos musicais (com o Giulio tocando com a orquestra da cidade); o Fabrício assistiu a uma peça de teatro na Plaza de los Heroes (no feriado que comemorava os heróis da pátria);  comíamos refeições de madrugada no Lido Bar, um reduto da boemia e classe artística de Assunção e que se assemelha muito ao Bar do Estadão em São Paulo (com a diferença de que no Lido só há mulheres, no balcão, na cozinha e no caixa); acabei encontrando uma bicicletaria que resolveu meu problema de raios a um preço irrisório.

Talvez valha então buscar o que a diferencia de outras grandes metrópoles globais, mas sinceramente não me vem à mente nada que a particularize além do que já é característico do Paraguai como um todo, como o Rio Paraná que atravessa todo o sul do país, o consumo constante de tereré, o patriotismo meio tradicionalista, a afirmação reiterada de uma identidade nacional a partir de tradições que a muito custo ainda sobrevivem (como por exemplo os violeiros), e também a partir de símbolos nacionais meio desgastados, o maior de todos na figura onipresente do Mariscal Solano Lopez, “herói” paraguaio que no entanto, com seus delírios imperialistas, levou o país à bancarrota com a Guerra do Paraguai.

Vista da janela do apartamento do Giulio em Assunção, onde se vê parte da região central e o Rio Paraná ao fundo.

Grafite que vimos ser pintado na noite anterior a essa foto. Os grafiteiros nos explicaram que nesse quarteirão viveu o escritor vanguardista Augusto Roas Bastos, autor de "Yo, el Supremo", considerada uma das obras capitais em língua espanhola e pouquíssimo conhecida.

Caminhando por Assunção

À noite no Bar Lido, depois do concerto da orquestra municipal, pedindo uma "sopa paraguaia" (que é uma espécie de torta bem consistente)

Caminhando com o Giulio pelo clube de esportes às margens do Rio Paraná

Dedicamos nosso último dia em Assunção praticamente só pra escrever textos pro blog ou resolver assuntos na internet, e na manhã do domingo partimos em direção a Quindii, já na Ruta 1, estrada mais tranquila e que liga Assunção a Encarnación, nosso último destino no Paraguai.

 

* Procurem no youtube ou baixem no Soulseek, do disco “Guaxo” da Helena Meirelles a faixa 15 – Fazenda Jararaca, e a faixa 16 – Sobre Boiadeiros e Bordéis, pra saberem mais. E pra ouvirem ela tocando e cantando em guarani uma canção que fala sobre o Mariscal Solano López, a faixa 9 – Cerro Corá, do mesmo disco.

Paraguai – parte 2

No último dia em Asunción, recebemos a notícia da morte da Julie Dias. Como já foi dito, muito pouco tem sido feito na cidade para a segurança dos ciclistas, embora haja leis pra isso. E é sempre uma tristeza e um vazio grande quando vemos alguém mais próximo do nosso cotidiano tendo a vida ceifada por falta de vontade política. Colocando a culpa em quem me parecem ser os verdadeiros culpados, falta de vontade política da prefeitura de São Paulo, também do cada vez mais irrelevante Ministério das Cidades, e por fim da CET, que não autua motoristas pelo artigo 201 do CTB (1,5m de distância mínima entre carros e bicicletas). Eu sei que muito mais gente, além dela, já se foi sem sequer ficarmos sabendo, mas é traumático lembrar que aquela moça sorridente que estava em Santa Maria Madalena no décimo encontro nacional de cicloturismo não estará mais neste ano. Por conta do atropelamento, decidimos homenagear da forma como podíamos a ciclista morta.

Vida segue. Pé na estrada em direção a Encarnación, onde terminaria a nossa viagem pelo Paraguai. No caminho, a primeira cidade onde posamos foi Quiindy, em cuja prefeitura dormimos. Acontecia um aniversário de 15 anos no salão e fomos convidados pelo pai da debutante a comer com eles, tomando uma Fanta Piña (no Paraguai tem Fanta laranja, abacaxi e guaraná. Não tem fanta uva, porque foi proibido pelas autoridades sanitárias do país). Começamos a encontrar desenhos de cidades um pouco diferentes, com aquela igreja central que vemos nas cidades do interior do Brasil. Um grupo de uns 10 moleques ficaram mais de duas horas conversando conosco na sorveteria, enquanto esperávamos o fim do jogo do Olympia (um dos times mais populares do país). Fim do jogo e o guarda da prefeitura liberou que colocássemos nossas coisas numa das salas.

Levantamos cedo e seguimos o trajeto, passando por Villa Florida. Há um rio, cujo nome já não lembro e que não consta no Google maps, que cruza o centro-sul do Paraguai. Nele, existe uma praia que é bem buscada por veranistas, já que a temperatura frequentemente ultrapassa os 40 graus (como aconteceu no dia em que passamos na cidade). Como era uma segunda-feira, foi só largar a bike de canto e cair na água, com quase ninguém nas praias.

Conhecendo Villa Florida

 

Descanso pra magrela.

Almoçamos e pedi o Surubim, peixe do rio Paraná, que tanto queria comer desde que estávamos em Asunción. No restô, encontramos um casal que nos comentou sobre as ruínas jesúítcas do país. Estávamos nos aproximando das região onde aconteceram as Missões dos Jesuítas no XVIII, cujas ocupações e expulsões foram decisórias para definir as fronteiras de Brasil, Paraguai e Argentina. Terminaríamos o dia no Quartel da Cavalaria do Exército do Paraguai em San Juan Bautista. Os milicos nos cederam uma casa de hóspedes próxima do quartel, onde passamos a noite para seguir viagem. A dona do restaurante de mais movimento da cidade é uma brasileira expatriada que mal se lembrava do português. Estranhíssimo falar com alguém que é do seu país mas que não lembra a língua natal.

O terceiro dia de pedal seria ainda mais legal que os anteriores, quando rumamos pra San Ignácio e terminamos em Santa Rosa. Em San Ignácio, há um museu sobre as missões, que estava fechado quando chegamos. Terminamos visitando o museu dos heróis da cidade que lutaram na Guerra contra a Bolívia (em que, lembre-se, o Paraguai ganhou, mas perdeu território). O Affonso encontrou uma casa das vítimas do regime ditatorial do Paraguai, onde falei com um senhor que havia sido preso e torturado pelo regime de Alfredo Stroessner. O senhor me mostrou o manual de ensino das escolas das ligas agrárias, todo escrito à mão e mimeografado, com os textos em Guarani e as imagens feitas pelos próprios professores e estudantes. A região da missões foi também o principal foco das ligas agrárias no Paraguai, movimento liderado por padres jesuítas do exterior e do Paraguai e que fomentou a união e emancipação de trabalhadores locais. Esse movimento social e seus líderes foram brutalmente perseguidos pelo governo ditatorial a partir de 1976. O Paraguai já tem uma comissão da Verdade bem organizada, que inclusive é a que mantém esta casa que visitamos. Já o Brasil…

Capa do manual escolar das ligas agrárias do Paraguai.

Se liga nas ilustras e no guarani.

Saí da casa das vítimas e fui encontrar com o Affonso, ainda esperando o museu dos jesuítas abrir. Notei que meu pneu estava furado e comecei a trocar a câmara. Nisto, uma moça de moto, de nome Sara, estava na porta esperando sua mãe, pra levar de carona. Não sei bem como começou, mas sei que quando vi, o Affonso estava falando com ela. Chegou a mãe e uma hora depois estávamos com a família, compartilhando um tereré. Foi uma das tardes mais legais que passamos no Paraguai. Só sei que esquecemos um pouco da hora e às 17h30 saímos da casa da família da Sara e seguimos em direção de Santa Rosa (reparou que nem fomos no museu jesuítico?). Nesta cidade, dormimos no ginásio de esportes e pudemos visitar um único prédio conservado das missões.

Ruína de Santa Rosa.

O quarto dia de pedal tinha caminho incerto. Chegamos numa bifurcação em que era possível ir a Coronel Bogado, ou virar e andar mais 30 km pra San Cosme e Damián. Decidimos almoçar em Coronel Bogado e voltar para a bifurcação pra passar a noite em San Cosme. Pedal de dia inteiro dessas coisas. Tivemos que andar 20 km a mais por conta disso, mas San Cosme estava a 30 km da bifurcação e tardaria mais 1,5h pra almoçarmos, fora que era arriscado nem encontrarmos mais comida. Alimentação é uma parada que volta a ser vital nesses dias. A estrada pra San Cosme, depois do almoço, era de mão dupla e sem acostamento, mas passava um veículo a cada 10 minutos, então foi um pedal super gostoso de fazer. Chegamos à cidade e jantamos no restaurante da Alba. Conversando com a família dela, convidaram a gente pra usar o quintal deles como acomodação, o que prontamente aceitamos. Fomos ao museu, ao lado das ruínas, mas infelizmente o mirador das estrelas da cidade fechava muito cedo, às 21h. Na volta, Alba nos comentou sobre as dunas do rio Paraná, onde tentaríamos ir no dia seguinte.

Decidimos ficar em San Cosme, para conhecer o mirador e as dunas. Impressionante como foi necessário eu ir para o Paraguai, visitando ruínas jesuíticas para pela primeira vez na vida olhar para o espaço num planetário. A visita ao museu, pela manhã, foi extremamente bem guiada e pudemos saber sobre Buenaventura Suárez, padre jesuíta nascido na Província de Santa Fé, na Argentina, quando essa ainda fazia parte do Paraguai. O cara estudou astronomia na Espanha e voltou pro Paraguai, para liderar algumas das missões. Primeiro astrônomo da América Latina, até hoje as previsões feitas por Buenaventura continuam bastante precisas. Por conta disso foi criado esse planetário onde fizemos observações aos céus de dia e de noite.

Nossa guia, ao lado de um brinquedo que eu tinha que ter tido quando era pequeno.

Esperando a noite chegar pra olhar o céu.

Destino:

No almoço, descobrimos que não seria possível visitar as dunas do Rio Paraná, porque haviam feito um passeio pela manhã e não havia outro marcado. Como o custo do passeio era muito alto (cerca de 600 mil guaranis, divididos por todos os que fizessem a visita), não seria possível para eu e o Affonso pagarmos tal valor (cerca de uns 240 reais). Conversamos com a Carolina, que organiza o passeio e falamos sobre a publicação no blog e talvez em outros veículos. Então ela fez um desconto para jornalistas, colocando o preço de custo de 300 mil. Alba, que estava nos hospedando, e sua filha Viviane quiseram ir e pagaram parte do valor. No dia seguinte, estávamos rumando para as dunas do Rio Paraná, que não só por sua beleza, mas por sua história e pelo compromisso que firmei com a Carolina, merecem um outro post.

Daqui a pouco voltamos.

 

 

Paraguai – parte 1

Tentando relembrar o que foram as últimas duas semanas, tudo se embaralha. Estradas, países, fronteiras, pessoas, nomes, locais onde dormimos, comidas, mates e tererés… O registro contínuo se faz obrigatório porque o acúmulo é certo depois de poucos dias.

Meu atraso não pode ser justificado, mas ao menos pode ser compreendido por conta do pau que meu computador teve. Como sei que alguns cicloviajantes e pessoas que querem colocar o pé na estrada acompanham esse blogue, vale dizer que planejei levar meu computador antigo, que tem garantia estendida de 3 anos. Até aqui, tudo certo que ele tenha dado pau. Vamos ver o que a garantia me conta quando chegarmos em Buenos Aires.

Escrevo hoje da pequena cidade de Itaqui, que fica entre São Borja e Uruguaiana, todas as três às margens do Rio Uruguai. Extremo sudoeste do Brasil e fronteira com a Província de Corrientes, na Argentina. Acho que o último registro mais preciso que fizemos foi em Asunción, ainda abalados com a morte da Julie Dias.

Antes de lá, havíamos cruzado o Paraguai em três dias, entrando por Ciudad Del Este, posando em Campo Nueve, San Jose Del Arroyo e terminando em Asunción. Nesta última, fomos recebidos pelo Giulio Andreotti, músico e morador de Asunción, que faz parte do Couchsurfing. Ficamos em sua casa por três dias e saímos em direção a Encarnación, no extremo sudeste do Paraguai. No caminho, posamos em Quiindy, San Juan Bautista, entramos em San Ignacio, posamos também em Santa Rosa e duas noites em San Cosme y Damián, para enfim chegar a Encarnación.

Este trajeto nos interessava para poder conhecer minimamente o Paraguai, país por onde poucos brasileiros viajam e por onde ainda menos cicloviajantes se arriscam. A última palavra foi escolhida porque nossa imagem do Paraguai nos sugere que viajar por lá é um risco. Depois de cruzar o país e coltar, não direi o contrário, mas devo dizer que o risco é bem menor do que imaginávamos. Já nos primeiros dias, ficamos realmente surpresos (pra não dizer chocados), ao ver meninos de 13 ou 14 anos andando de moto. Nem vou dizer que estavam sem capacete, porque os adultos também não o usam, com exceção de Asunción e Ciudad Del Este. As motos são extremamente populares no interior do Paraguai, sendo os motoqueiros os que ocupam a posição de “oprimidos”. Posição que costumeiramente nós ciclistas ocupamos em cidades onde as bikes começam a aparecer. Por incrível que pareça, o caos geral causado pela quantidade e os múltiplos usos feitos da moto faz com que a média de velocidade seja mais baixa e também com que as motos estejam quase sempre no acostamento. Como cruzamos todo o Paraguai usando os acostamentos, era comum ser ultrapassado por uma delas numa daquelas finas que normalmente levamos de carros. A boa nova é que, se caíssemos, o acidente provavelmente não seria fatal. Nada aconteceu, mesmo com pessoas circulando pelos acostamentos, motos vindo na contramão, motos com famílias inteiras (vi até com 4 pessoas) e motos pilotadas por crianças. Parece, de novo, que o caos do trânsito de lá obriga as pessoas a irem mais devagar e tomarem mais cuidado.

Tipo de imagem corriqueira na Ruta 2 Fonte: http://www.abc.com.py/nota/asi-se-maneja-por-ruta-2/

A maneira como as cidades do interior do Paraguai se desenvolveram também é bem peculiar. No Brasil, estamos acostumados a pegar um acesso ou um trevo para entrar numa cidade. No Paraguai, na grande maioria das vezes, a própria estrada é a avenida principal da cidade. Giulio nos explicou que isso foi um problema de planejamento das pistas, que foram construídas exatamente sobre as antigas rotas de tropeiros, diferente das estradas brasileiras que foram construídas próximas, mas ao lado das cidades. O resultado é um misto de marginal, com cara de interior e com muitas homenagens aos mortos na estrada. No princípio, achei que o Paraguai teria a mesma quantidade de cruzes que no Brasil, mas logo no primeiro dia já desisti de registrar todas as cruzes que encontrávamos. Como disse no post anterior, a sensação é de andar por um grande cemitério.

Estávamos apreensivos quanto a onde terminaríamos dormindo, uma vez que fomos diversas vezes recepcionados pelas prefeituras e secretarias de esportes no Brasil. Por lá, no primeiro dia encontramos um brasileiro que mora no Paraguai há décadas e que nos permitiu armar a barraca no seu quintal. A cidade era Campo Nueve (ou Doctor Eulogio Estigarribia, como renomearam, mas todo mundo chama de Campo Nueve). Antes de chegar na casa, o Affonso ficou pra trás, enquanto eu seguia a moto do brasiguaio. Foi a oportunidade de usarmos pela primeira vez os radinhos que compramos em Foz do Iguaçu, exatamente pro caso de nos separarmos. Conhecemos toda a família do nosso anfitrião, ganhamos uma hamburguesa, dormimos cedo e partimos pra San José Del Arroyo.

Nesta cidade, fomos recebidos pelo diácono da igreja local. Armamos a barraca numa espécie de palco anexo à igreja, onde o ar era fresco de noite, mas que descobrimos ser uma área bem aberta à circulação de pessoas. Tivemos que revezar cuidando das coisas, o que não foi muito difícil já que não havia nada o que fazer na cidade. O curioso foi receber uma jarra de suco espontaneamente da vizinha da igreja. Eu e o Affonso às vezes brincamos que estamos jogando Zelda e que ganhamos alguns itens. Em Ponta Grossa, o Cláudio nos presenteou com duas meias de dedos, melhores para o frio. Em Cascavel, o Túlio deu Malto Dextrina ao Affonso, que serve pra repor carboidratos. Em Ibema, o Affonso recebeu um tupperware grande de comida de uma mulher e mais 10 reais de um senhor. Mais pra frente, conto também dos itens que perdemos pelo caminho.

Meias de dedo!

Ainda em San Jose del Arroyo, um raio da roda traseira do Affonso estava quebrado. E pra nossa total surpresa, não havia bicicletarias na cidade. Nenhuma. Veja como faz sentido: a criança com 12 anos já está aprendendo a usar as marchas na moto. Em todos os lugares, só existem borracharias e nenhuma bicicletaria. O calor nessa região variava entre 28 e 37 graus. Tudo isso colabora pra que não haja demanda por bicicletas, tampouco por bicicletarias. Não tínhamos a ferramenta pra sacar o cassete, e o Affonso tentou resolver com um cara que arrumava motos. Não rolou o improviso e não tínhamos confiança pra ele rodar 103 km até Asunción com o raio quebrado. A solução foi ele ir de ônibus e eu ir sozinho de bicicleta.

Saí de San Jose tarde, lá pelas 11h. Cheguei a Asunción, depois de uma parada pro almoço e três pra tomar sorvete, quando a noite já chegava. Logo na entrada, já encontrei com um mecânico que relembrou a Guerra do Paraguai. Essa imagem da guerra, bem como a guerra contra a Bolívia, forjaram o imaginário e a identidade nacional (ao menos pelo que eu pude ver) e estarão presentes durante toda a nossa passagem pelo país. Cheguei no apê do Giulio e o Affonso já estava por lá. Alguns dias de wi-fi, cidade grande e cervejas nos esperavam.

Entrando em Asunción - registro da gopro

Ficamos ao todo 3 dias e 4 noites da casa do Giulio, nas quais fomos convidados todos os dias pra sair ao pub mais próximo, com a ilustre companhia do nosso anfitrião. Giulio é editor de uma TV local e músico da orquestra municipal. Mora na região central de Asunción e conhece gente pra caramba por lá (parecia um vereador cumprimentando eleitores a cada esqina). Com ele, fomos a um pub e três restaurantes massa pra caramba. Um dos restôes, o melhor de todos, foi o Lido, que já estava super indicado pelo Gilberto Kyono. Os preços eram bem fora da curva da vida franciscana da estrada, mas nada como voltar um pouco a ter o que era o cotidiano de São Paulo.

Foi também por meio do nosso anfitrião que começamos a ouvir uma outra história do Paraguai, que só vai ganhar forma mais precisa quando saímos do país. Cabe dizer que a Guerra do Paraguai, que estudamos super pouco por aqui, matou 90% da população masculina do país, o que já dá uma idéia do tamanho da destruição que causamos. Boa parte das questões de diplomacia do Brasil são apresentadas hoje como forma de compensar os estragos da guerra, mas no geral o Paraguai continua vendendo quase a metade da energia de Itaipu super barato pro Brasil e continua no caminho do subdesenvolvimento, com seus carros importados quase sem impostos e divisão de terra extremamente concentrada.

Asunción é uma capital caótica como a São Paulo de 10 anos atrás, onde os donos de carro mandam. A única imagem da cidade que me tira esse referencial é a da comemoração do dia dos Heróis. Calhou de estarmos lá nesse feriado e fui assistir os festejos na Praça dos Heróis. Tanto a peça quanto a apresentação de dança referenciavam a morte do Marechal Solano López, assassinado pelo exército brasileiro e que deu fim à Guerra do Paraguai. Saí com essa imagem forte na cabeça: a de uma identidade nacional forjada na morte e nas derrotas. Na Guerra com a Bolívia, o Paraguai ganhou, mas cedeu territórios no acordo de paz, o que também é uma espécie de derrota. No entanto, mesmo assim eles têm um dia para comemorar seus heróis e não há uma cidade por onde passamos que não tenha uma rua “Mariscal López”.

Fim da primeira parte da viagem ao Paraguai.

Ps: As imagens desse post são meio toscas, pq as melhores ficaram presas no backup. Como o backup da apple só serve em outro macbook, to na roça.

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Mais uma ciclista morta na avenida paulista

Em 2009, quando minha bike tinha acabado de ser roubada, aconteceu o atropelamentdo da Márcia Prado na Avenida Paulista. Naquela época, como não estava pedalando, acompanhei as manifestações a pé e tentei saber por uma série de postagens quem era a pessoa que havia sido morta.

Em 2012, Márcia Prado tem um memorial na Avenida Paulista. Além disso, seu nome está marcado na primeira rota cicloturística pro litoral. Recentemente, um grupo foi acompanhar um dos julgamentos do processo. A memória da pessoa e do atropelamento continuam presentes nas listas tanto da Bicicletada, quanto do Ciclotur. Com isso tudo, quero dizer que muito foi feito para que houvesse memória do fato e para que ele não se repetisse.

Hoje, mais uma ciclista foi morta num atropelamento de ônibus na Avenida Paulista. Pelas primeiras fotos, arrisco dizer que ela foi morta a menos de uma quadra de onde morreu a Márcia Prado. Ainda não sabemos quem é, Seu nome era Julie Dias e a conheci neste ano no encontro nacional de cicloturismo em Santa Maria Madalena. Com a caixa de papelão no bagageiro, Julie não era uma ciclista de “lazer”, mas alguém que se transportava de bicicleta. As primeiras testemunhas ouvidas afirmam que o motorista atravessou no farol vermelho, o que, se confirmado, é o mesmo que dizer que o motorista assassinou a ciclista. Cara, só posso dizer que se foi uma moça jovem, muito bonita e de extrema simpatia, que curtia viajar de bike e que vai fazer uma falta do mais grande caralho nos próximos encontros de cicloturismo.

Cabe ressaltar que, de 2009 pra cá, nenhuma faixa especial pra ciclistas foi pintada na Avenida Paulista. Os ônibus continuam circulando do lado direito, aonde os ciclistas são obrigados por lei a transitar. Os carros continuam sendo vistos com frequência acima de 60km/h. A CET continua não autuando pessoas que passam com seus carros a menos de 1,5m dos ciclistas. Em suma, a Avenida Paulista continua sendo simbólica do quanto nossos políticos estão cagando pros ciclistas e pras leis que deveriam estar cumprindo.

Lembro tudo isso, porque passei 4 semanas de bicicleta nas estradas do Brasil e 3 dias nas estradas do Paraguai. E a sensação geral de circular por uma estrada, um espaço feito para os carros andarem a velocidades inumanas, por vezes é a mesma que de passear por um grande cemitério, depois de encontrar centenas de cruzes e monumentos aos mortos em “acidentes”.

Brasil

Paraguai

Avenida Paulista

Entrevista que fizemos em Prudentópolis-PR

Há quase duas semanas respondi a uma entrevista em Prudentópolis sobre nossa viagem de bicicleta. Só há poucos dias conseguimos achá-la publicada na internet: http://intervalodanoticias.blogspot.com/2012/02/ciclista-que-vao-percorrer-as-americas.html

Uma correção: eu não digo “místico”, e sim “turístico” num trecho ao final da entrevista. Houve um pequeno corte no som que dá essa impressão errada.

Obrigado Élio Kohut pela entrevista.